quinta-feira, agosto 09, 2007

ABELARDO E IZMIR - Conto

Abelardo Antunes, ou melhor, Don Abelardo Antunes Morales; espanhol nascido há 65 anos na cidade de Valência, às margens do Mar Báltico.
Seus pais eram turcos que fugiram da pequena cidade de Izmir no decorrer de uma guerra civil provocada pela posse de terras. Durante a viagem de fuga a pequena família passou por vários paises até fixarem residência na Espanha. A cidade escolhida foi Valência.
O menino Abelardo, assim que atingiu os 15 anos e desanimado com o trabalho árduo auxiliando seus pais no comércio que possuíam, decidiu que iria mudar de ares e tentar a sorte do outro lado do Oceano Atlântico.
Pediu licença e embarcou para a América do Sul. O destino seria qualquer cidade de língua espanhola onde teria maiores facilidades de comunicação. Na bagagem ele carregava o dinheiro necessário para viver por dois meses, algumas mudas de roupa e a prática como atendente de peixaria.
Ele sabia escrever e ler a língua espanhola e um pouco de português que, por sinal, salvou-lhe a vida quando estava de passagem por Portugal. A polícia local prendeu-o ao confundi-lo com um homem que roubara um garrafão de Vinho do Porto poucos momentos antes do embarque. Aconteceu que um senhor largara as malas e o garrafão para conferir o bilhete de embarque. Aproveitando-se do descuido o ladrão, vestindo roupas muito parecidas com as que Abelardo usava, passou a mão no garrafão e correu em direção à cidade. A polícia foi avisada e foi em busca do larápio.
Abelardo aproximava-se do local onde o bilheteiro controlava o ingresso dos passageiros quando o chefe de polícia confundiu-o. O turquinho foi preso e quase levado à delegacia.
O policial não entendia a língua espanhola e Abelardo só foi liberado após explicar e provar, falando o pouco português que conhecia, afirmando não ter nada a ver com o tal garrafão de vinho.
Depois da confusão Abelardo embarcou no navio indo para camarote número 77. O conforto não era dos melhores, mas tinha cama, pia e um pequeno banheiro com vaso sanitário e chuveiro. A limpeza do que seria o seu refúgio durante os próximos dias deixava muito a desejar e um cheiro de urina e desinfetante pairava no ar quente da cabina.
O apito do enorme vapor avisou que chegara à hora da partida. Os relógios marcavam dezoito horas de um final de tarde quente do verão europeu.
Aquela deveria ser a primeira noite de descanso para Abelardo e, inesquecível! O calor e o mau cheiro não o incomodariam, visto que uma enorme canseira se apoderara do corpo franzino do adolescente.
Após comer sanduíche com pão, queijo, salame e beber café frio que trouxera para sua primeira alimentação a bordo, Abelardo passou a chave na porta da cabina e procurou repouso na cama úmida. Antes de apagar a luz fez uma breve vistoria e não localizou nenhuma barata ou outro inseto rastejante. Logo estava pronto para a noite de descanso.
Ao embalo das ondas, Abelardo adormeceu. Porém, dez minutos depois ele foi acordado por um zumbido no ouvido. Imediatamente ele associou o som ao de um pernilongo. Meio acordado passou a mão pela cabeça e voltou a dormir. Mais dez minutos e ele acordou com uma coceira na testa e, novamente, ouviu o zumbido do mosquitinho junto à cabeça.
Abelardo começou a impacientar-se. O fincudo estava perturbando demais o seu repouso. Então decidiu que já era hora de acabar com a festa do inseto. Teria que tomar algumas atitudes e a primeira delas seria cobrir-se todo só deixando os olhos descobertos, assim o mosquito não teria onde pousar. Mesmo com o calor muito intenso ele tomou a drástica ação.
Abelardo conseguiu pegar no sono, contudo, o zumbidinho irritante se fazia presente junto ao ouvido que, mesmo coberto pelo lençol, captava o som. Abelardo deliberou que ficaria com a orelha descoberta e, assim que o pernilongo o pousasse daria um tapa que faria do mosquito um ex-inseto voador.
O plano era perfeito. Então, descobriu a orelha e, em seguida, percebeu o conhecido som que, àquela hora, mais parecia o som de um trem! Nas duas primeiras tentativas Abelardo não teve sucesso, mas na terceira, ele esperou que o mosquito pousasse na orelha e, quando sentiu segurança, desferiu o tapa de cima para baixo que atingiu o inseto em cheio!

Abelardo ouviu o ruído das asinhas do pequeno inseto a debater-se. Uma coceirinha no ouvido acusou que o mosquito tinha sido atingido de forma que não iria mais poder alçar vôos; e aí, surgiu o problema: o pernilongo, ao debater-se, caiu para dentro do ouvido e ingressou pelo canal auditivo. Abelardo não mais ouvia o inseto, mas sentia-o como que se estivesse voando dentro da sua cabeça! Os cabelos se arrepiaram ao experimentar as asinhas a se debaterem dentro dele
- Mas como pode ter acontecido? O bicho está voando dentro de mim?
E estava mesmo. Abelardo provou até certo prazer quando o mosquitinho entrou pelo canal do ouvido.
Durante toda a semana seguinte ele teve que conviver com o mosquitinho dentro da sua cabeça. Às vezes, o pernilongo ia até a saída do canal do ouvido, olhava em volta e retornava para dentro da cabeça.
Abelardo acostumou-se com o zumbido e, as incursões de seu mais novo hóspede, antes desconfortáveis, passaram à normalidade. Na hora do banho, por exemplo, Abelardo tinha o cuidado de proteger a orelha contra os respingos de água porque Izmir poderia se afogar.

“Abelardo estava tão afeito ao mosquito, e vice-versa, que ele lhe deu um nome – Izmir – em homenagem à cidade natal de seus pais. Assim sendo, Abelardo conversava com Izmir durante o transcorrer do dia. É lógico que o mosquito não respondia até porque o pernilongo estava recém apredendo a conviver com um ser humano sem precisar sugá-lo em busca de alimento. Abelardo alimentava Izmir todas as noites com minúsculas gotículas de sangue fresco que ele recolhia de um corte mínimo que fizera na ponta do seu dedão do pé direito. É certo que o inseto adorava o cardápio!”.

Na manhã de um Domingo de inverno no hemisfério sul, o vapor chegou ao destino: Montevidéu, no Uruguai. Abelardo acordara bem cedo a fim de organizar-se para a chegada. Sacudiu levemente a cabeça para que Izmir acordasse e também ficasse pronto para o desembarque. Prontos subiram escadas até a parte superior do vapor.
Os dois companheiros aguardavam no deck o navio ancorar. Fazia muito frio e Izmir achou melhor “entrar”, pois o vento era gelado e ele poderia adoecer.
Não era inseto que suportasse clima frio e, na realidade, Izmir detestava temperaturas tão baixas. Para a sua sorte Abelardo era um bom menino e compreendia seu desconforto.
Por causa disso, Abelardo e Izmir decidiram mudar para um local onde o clima fosse mais humano e suportável. Permaneceram em Montevidéu por duas semanas e, padecendo com o frio, viajaram para o Brasil. Escolheram uma próspera cidade do interior do Paraná situada no extremo oeste daquele Estado. O clima era ideal para os dois companheiros. A temperatura média durante o ano era de trinta graus centígrados. Para eles estava ótimo. Sentiram-se muito à vontade.
Izmir então, achou que poderia dar umas fugidinhas. Sem pedir licença a Abelardo começou a sair durante o dia para fazer vôos de reconhecimento. Mais tarde, seguro iniciou-se em saídas noturnas.

“Izmir, apesar de bem alimentado, sempre tivera vontade de provar outros sabores. Abelardo tinha um bom sangue, porém, nada como variar o cardápio”.

Certa noite, depois de se certificar que Abelardo dormira, Izmir alçou-se em vôo noturno. Não pensava em se afastar muito porque se Abelardo acordasse poderia ficar preocupado com a ausência do companheiro pernilongo.
Izmir era mesmo um inseto de muita sorte! Logo na saída, já encontrou uma mulher que andava pelo corredor da pensão onde os dois moravam. Aproveitou-se do descuido da jovem, que tranqüilamente lia uma revista de fofocas, e pousou sobre o farto seio esquerdo da garota. Sugou-a com uma voracidade animalesca. Ao final sentiu-se envergonhado pela atitude. Percebeu que exagerara na dose quando precisou voar. Ele estava com excesso de peso! Não tinha como sair porque seria uma viagem suicida.
Nesses casos, Izmir tinha que aguardar alguns minutos até que o seu organismo absorvesse e digerisse um pouco do alimento.
Acomodou-se junto ao aconchegante e juvenil peito esquerdo, próximo à borda do sutiã e inativo, adormeceu.
Depois de uma hora aproximadamente Izmir acordou por causa de um súbito sacolejo.
O sutiã estava sendo retirado pela jovem e, bem a tempo, Izmir safou-se de parar dentro de um tanque cheio de água e sabão.
Constatou que, por estar mais leve, conseguiria voltar para casa.
Abelardo dormia o sono dos justos. Trabalhara durante todo o dia. Aliás, o serviço era desgastante. Assim que chegou à cidade empregou-se como gari no serviço público de varrição da cidade. Trabalhava oito horas por dia em dois turnos. Sob o sol escaldante andava pelas calçadas com um carrinho que pesava muito mais quando o turno terminava. Tinha uma hora para o almoço e descanso. Alimentava-se de sanduíches e pastéis que ele mesmo preparava na noite anterior. Um suco de frutas acompanhava o lanche.
Num dia muito quente, Abelardo preparava-se para o almoço. Estava trabalhando na praça principal, bem no centro da cidade. O movimento das pessoas indo e vindo era impressionante. Homens, mulheres, crianças, jovens e velhos andavam de um lado para o outro. Pareciam perdidos.
Abelardo notou que, mesmo sendo hora de almoço, os transeuntes não tinham onde fazer um lanche rápido. Naquele exato momento ele daria o passo inicial em direção daquilo que seria o mais importante comércio gastronômico do centro da cidade – nascia a Pastelaria Don Abelardo.
O começo foi num pequeno carrinho onde Abelardo fritava os pastéis que fazia em casa na noite anterior; mais adiante, alugou uma loja de esquina na qual tinha balcão, banquetas e mesas na calçada.
A “Don Abelardo Pastelaria” ficou famosa pela qualidade e o preço popular dos lanches.
Por conta das idas e vindas, Izmir foi esquecido por seu velho companheiro de navio. Abelardo não se preocupava mais com Izmir; se ele estava ou não dentro da sua cabeça; se tinha se alimentado ou mesmo se estivesse doente, Abelardo não se importava. Estava sempre ocupado com o novo negócio.
Izmir entrou em profunda depressão. Abandonado e esquecido, o pobre mosquito pensou em suicídio. Numa noite muito quente descansou sobre aquele seio esquerdo da menina da pensão disposto a sugar tanto sangue que, ao final, viesse a explodir.
Assim ele o fez! Entupido, quase não parava em pé. Muito desgostoso com a vida e desiludido com Abelardo chamou a atenção da jovem ao picá-la impetuosamente.
Ato contínuo, com a mão esquerda espalmada, ela apertou Izmir contra o seio!
Foi o fim! Tudo acabado! Izmir ainda teve um último instante de lucidez e desejou que Abelardo não ficasse sabendo de sua morte. O seu antigo companheiro do Velho Continente não poderia ficar nessa vida sentindo remorso pelo esquecimento.
Izmir sabia da sua condição de um mero inseto, mas não poderia ter sido abandonado por Abelardo. Em quantas ocasiões Izmir, pessoalmente, tratou de proteger seu companheiro quando outras muriçocas se aproximavam durante a noite? Izmir acordava ao ouvir o barulho dos invasores sedentos pelo sangue fresco do seu amigo e, imediatamente, envolvia-se numa verdadeira batalha aérea no sentido de afastar os penetras.
Às vezes, ferido, Izmir voltava para dentro da cabeça de Abelardo sem fazer barulho algum para não atrapalhar o sono do amigo; mas permanecia vigilante durante quase todo o tempo, pois os inimigos poderiam voltar.
Abelardo desprezara-o! Em seguida Izmir bateu as asinhas pela última vez. Esvaiu-se em sangue. Exaurido, morreu esmagado entre a mão da jovem e o farto seio.

Abelardo, filho de turcos, nascido em Valência, agora conhecido comerciante da área da gastronomia, seria homenageado pela comunidade da cidade que escolhera para viver. Aos 65 anos de idade Don Abelardo foi convidado para subir à tribuna do auditório da Câmara de Vereadores a fim de receber o diploma de “Cidadão Honorário”. O honroso título era anualmente concedido às pessoas estrangeiras que haviam colaborado para o engrandecimento da cidade.

Don Abelardo, depois de tantos anos morando no Brasil incorporara alguns hábitos dos brasileiros. Tinha muito bom relacionamento na cidade. Dentre seus amigos encontravam-se vereadores e assessores de políticos.
Por vias nem um pouco honestas, Don Abelardo vencera licitação para o fornecimento de pastéis para toda a rede de escolas do município. Para tanto, distribuiu propina aos membros do grupo que analisou as propostas; o dinheiro, Abelardo colocava em um saco de papel pardo. Depois, um dos componentes da comissão de licitação se encarregava de repassar os valores para os outros corruptos. Abelardo ganhou muito dinheiro com a safadeza.

Na tribuna, ele agradeceu ter sido lembrado e salientou que certamente haveria gente mais importante que ele para receber tão honroso diploma.
Destacou sua origem humilde e relatou os sacrifícios que passara durante a viagem de navio desde o embarque em Portugal.
E foi durante o emocionado discurso que Abelardo, subitamente, voltou a lembrar de seu velho companheiro Izmir. Um pouco atordoado deu-se conta que esquecera de citar o nome do mosquito amigo. Como não poderia explicar para os ouvintes a amizade com um inseto e que o bichinho morava dentro da sua cabeça, limitou-se a fazer uma breve referência ao parceiro, descrevendo-o como “um antigo companheiro de viagem”.
Um zumbidinho característico rondou o ouvido de Abelardo provocando-lhe um sorriso que, para os expectadores, nada queria dizer. Era o som de um mosquito e, sem dúvida, seria Izmir – concluiu o turco. Abelardo ainda conseguiu perceber quando o inseto pousou no seu pescoço picando-o. Seria um beijo de felicitações? - pensou Don Abelardo - e estranhou, pois Izmir havia lhe picado somente uma vez na vida e a forma como fora abordado por aquele pernilongo realmente não lhe era familiar.
Mesmo assim mentalmente agradeceu o beijo que recebera do pequeno voador e seguiu no seu inflamado discurso.
Uma semana depois Abelardo foi internado no hospital municipal com febre alta e forte hemorragia. Ele contraíra alguma doença tropical.
Durante noites e dias Don Abelardo pensava em Izmir. Conclui que aquele beijo não fora de seu velho amigo. Onde estaria Izmir?
E morreu!

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