quarta-feira, janeiro 30, 2008

COM AS QUATRO PATAS


Fui a um cartório de registro de imóveis a fim de demonstrar que uma das exigências solicitadas pela titular na revisão da documentação que eu protocolara, além de não estar de acordo com as normas técnicas, também fora interpretada por ela de maneira equivocada e que, na análise elaborada, a titular utilizara critérios diferentes para a mesma situação.
A “titular”, como ela fez questão de salientar ao se dirigir a mim grosseiramente, não aceitou meus argumentos e sugeriu que, se eu não concordasse que eu fosse procurar o juiz. Virando-se e saindo, deixou-me no balcão de atendimento sem maiores explicações.
Depois fiquei sabendo através de outros profissionais que o comportamento da “titular” é sempre repleto de indelicadezas, aliás, comportamento costumeiro em outros cartórios.
O clima dentro da sala de trabalho ficou tenso por conta da voz alterada daquela senhora.
Havia um cheiro de burocracia no local - e no estado sólido, eu poderia afirmar!
As máquinas de escrever e os toques nos teclados dos computadores subitamente pararam e enormes livros com capa dura serviram como escudo para aqueles funcionários envergonhados – mais uma vez provavelmente naquele dia – por causa do comportamento daquela senhora com fixador nos cabelos, brincos enormes, batom vermelho e muito – mas demasiadamente mal-humorada.
Claro fica que a arrogância da senhora é totalmente incompatível com o cargo e a função que ela desempenha. Aliás, educação é obrigação de quem lida com o público.

Aprendi, por aí, que a ofensa só é completa se o ofendido aceitar a provocação. Não acolhi a afronta.
Por fim, fiz como todos fazem ao encaminhar processos naquele cartório, ou seja, tudo de acordo com a solicitação da titular, embora sabendo que ela estava errada.
Por que agi assim?
É porque, na próxima oportunidade, serei punido com retaliações e meus processos serão esquecidos em baixo de uma pilha de pastas; sei que se eu recorrer ao judiciário, o assunto ficará em baixo de outra pilha de processos e ainda correrei o risco de perder – não a ação movida, talvez – mas o meu cliente; enfim sei que os superprotegidos “titulares” de cartório não serão punidos. Eles não serão demitidos ou exonerados (sei eu qual o termo correto) por mau atendimento, arrogância, indelicadezas ou erros técnicos de avaliação.
E eles, os “titulares”, também sabem disso, por isso a prepotência se mostra tão evidente.

Por esta falta de iniciativa de enfrentar a situação é que a “titular” seguirá atendendo com as quatro patas.
É como o velho ditado: “manda quem pode e obedece quem precisa”.
Enquanto não reagirmos, a coisa permanecerá como já acontecia no tempo do império.

sexta-feira, janeiro 25, 2008

MADURO, MAS NEM TANTO.

Joaquim Assis, 72 anos, Cineasta, Engenheiro e Músico-Regente Coral fez, durante entrevista concedida ao Canal Brasil, uma frase curiosa ao responder a seguinte pergunta feita pela repórter:
- O senhor se considera maduro aos 72 anos?
A resposta rápida acompanhada de um sorriso maroto foi a seguinte:
- Não, porque “maduro” está muito próximo do “podre”.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

ESTRANHAS SENSAÇÕES

Dois acontecimentos que vivi nos últimos dias me fizeram sentir estranhas sensações que acredito transformarão conceitos ou preconceitos que tenho.
Melhor dizendo, verei certas coisas de forma diferente. Pode alguém pensar que é asneira ou exagero meu.
Explico.
O primeiro fato se refere ao analfabeto, àquele que não sabe ler as letras expressas, por exemplo, na placa que informa o destino do ônibus.
Senti-me como um analfabeto ao abrir a página de uma revista especializada em musica quando não consegui ler a partitura para iniciantes que explicava como executar uma simples canção.
Antes de tudo senti um tipo de raiva contra mim mesmo. Fiz enorme esforço. Tentei por raciocínio lógico, por comparações visuais entre aquelas bolinhas pretas ligadas por linhas e que pulavam de um lugar para o outro, subiam depois desciam, se ligavam e eu sem entender nada.
Depois senti vergonha por não saber ler aquilo. Mais adiante senti um vazio sem explicação...
Lembrei das aulas de “orfeão” ministradas pela Dona Neli, a professora do primário. Ela me ensinou algumas coisas sobre partitura. Eu sabia escrever uma clave de sol... Mas não passou disso. Esqueci e permaneci analfabeto.
A sensação de desconforto aumentou mais ainda quando pensei naquelas pessoas que assinam com o polegar lambuzado de tinta. É humilhante!

O segundo acontecimento ocorreu ainda hoje pela manhã.
Atropelei um cachorro – e dos graúdos – quando eu trafegava pela BR 116. O cão apareceu do nada. Freei, porém não deu tempo para desviar. O bichinho bateu no pára-lama do meu carro, rodopiou e, desnorteado, ficou por alguns segundos arrastando-se na pista. Os olhos do animal fixaram-se nos meus que, a esta altura, estavam mais arregalados que os olhos verdes do cachorro com pelagem castanha e lisa.
A troca de olhares estabeleceu um vínculo de afeto. Pareceu-me que ele pedia explicações e eu, perguntava se estava tudo bem. Estranha sensação. Um ser humano e um animal vivendo experiências tão intensas.
A seguir o bichinho se levantou e saiu correndo para a calçada.
Eu acelerei o carro e segui em frente, afinal estava eu numa rodovia e não poderia ficar ali parado sob pena de ser abalroado por outro veículo. Esta é a desculpa para a fuga!
Não prestei socorro e este fato me incomoda até agora. Estará em boas condições aquele cão? Teria ele quebrado uma perna ou costela? Hemorragia interna talvez? Estará morto na calçada? Ou pior: agonizando? E o afeto? Esqueci?

Duas sensações estranhas que ficarão comigo até que o tempo me ajude a entender melhor a vida.

Conto: VILA FORMOSA


- Este é meu avô – disse o jovem segurando a velha tela pintada a óleo.
Com o próprio lenço de algodão branco o rapaz retirou a grossa camada de pó que descansava sobre a moldura quase toda tomada pelos cupins.
Algumas caixas cheias de papéis com anotações manuscritas, cadernos com capa dura e folhas amareladas, livros e recortes de jornais com manchetes políticas ocupavam o chão de madeira daquele quarto.
Raios do sol da tarde penetravam pela janela com gelosias confeccionadas por algum marceneiro habilidoso e de confiança do guarda-livros, o homem retratado naquele óleo e que mandara construir aquela casa de veraneio em 1904.
No piso superior do velho sobrado com vinte e três cômodos ficavam os quartos, banheiros e a sala de leitura e estar. A escada de madeira, com balaústres torneados, chegava ao longo e largo corredor para o qual as portas dos cômodos se abriam.
A pintura descascada nas grossas paredes de tijolos de barro mostrava as várias cores das tintas que foram sobrepostas durante os anos em que o sobrado foi habitado pela família. O cheiro de mofo pairava no ar.
No quarto ao lado, um pouco menor que aquele anterior, havia somente uma cama de solteiro com um grande mosqueteiro pendurado no teto por pequenos ganchos, o criado-mudo e uma cadeira de balanço. Sobre a mesinha de cabeceira a bacia de louça branca e a jarra pareciam ter sido esquecidas naquela posição; o colchão de molas protegido por tecido listrado tinha manchas amareladas e marrons. Do teto pendia o lustre com quatro braços que resistira até agora a iminente queda somente pelos fios de luz.
Melancólico o rapaz explicou que naquele quarto sua avó passara os últimos dias de vida até que morreu vitimada por doença respiratória.
- Foram dias muito tristes - disse o jovem.
Um arrepio correu pela pele do corretor de imóveis que acompanhava o herdeiro do sobrado.
Depois, os dois vistoriaram os banheiros que eram equipados com banheiras e sistema de aquecimento de água para o banho através de caldeiras a lenha. Abriram portas e janelas e vasculharam dormitórios e salas.
No final do corredor, ao abrirem uma porta, uma pequena escada dava acesso ao sótão. Pelo menos há vinte e cinco anos o sótão não recebia visita de qualquer pessoa.
A cada passo o estralejar das madeiras do piso provocava um ar de mistério, agora testemunhado pelos visitantes. O rangir das portas e das janelas que eles abriam toda vez que entravam naquelas dependências despertava a curiosidade e a vontade de descobrir segredos ocultos.
Em outra sala o armário da biblioteca deixava à mostra os poucos volumes que resistiram às traças e aos cupins. A grande porta de madeira e vidro, ao lado da entrada, dava acesso à sacada, elemento principal da fachada do casarão com características neoclássicas.
Quantas conversas e silêncios; quantos beijos e abraços; quantas histórias acontecidas e guardadas pelo tempo.

Enquanto o herdeiro descrevia particularidades sobre o sobrado, fatos que lhe foram relatados pelo avô, o corretor fotografava com cuidado cada canto do sobrado.
O material fotográfico seria parte integrante do relatório de venda do imóvel e que seria entregue a uma grande empresa do setor da construção civil. O plano era a edificação de uma torre residencial.

Depois de uma hora e de terem circulado pelas dependências do térreo, entre pisos de mármore, cristaleiras embutidas e a ampla cozinha com as paredes revestidas com azulejos bisotados, os dois visitantes chegaram à área externa.
Nos jardins que envolviam o sobrado, árvores frondosas definiam espaços de estar e o que deveria ter sido o estacionamento de carros. Nos fundo do lote ainda havia a piscina e quiosque com churrasqueira e uma construção de pedras de granito.
A propriedade era protegida por muros tão altos que seria impossível o acesso externo senão por escadas.
A casa não estava de toda abandonada. A pouca manutenção do sobrado e dos jardins se dava pela mínima disposição do caseiro que morava nos fundos do sobrado.
Ele era um homem idoso e fora o motorista da família até os últimos dias de ocupação do velho casarão. O negro era forte e afirmava que impediria, enquanto tivesse forças, a derrubada do sobrado da Vila Formosa que ele ajudará a construir.
Sempre que podia afirmava que, se a demolição viesse a acontecer, dias de muita tristeza e fatos estranhos poderiam ocorrer.
O fato é que quase ninguém levava a sério as ameaças daquele preto-velho.


A HISTÓRIA CONTA

A casa que fora construída para servir como opção de descanso foi adotada pela família como moradia definitiva. Assim, Dona Formosa – a esposa do guarda-livros – instalou, de um lado, um armazém de secos e molhados, e do outro, a primeira loja de fazendas e armarinhos da cidade.
Provavelmente tenha sido um período de muito trabalho e com bons lucros, pois a casa recebeu obras de ampliação em 1923.
A residência permaneceu habitada por um dos filhos até 1999.


VOZES NO CASARÃO

Antes de concluir o relatório que seria levado ao mercado imobiliário, o corretor ainda necessitaria voltar ao casarão a fim de obter os últimos dados. Na impossibilidade de ser acompanhado pelo anfitrião e herdeiro que viajara para São Paulo, o corretor, tendo as chaves do sobrado, retornaria à velha casa.
O dia era de inverno e chuvoso. Como escurecia cedo a inspeção não poderia se estender até muito tarde e, por volta das dezesseis horas, ele se dirigiu ao local.
Constatou que o caseiro não se encontrava, apesar de verificar que portas e janelas do pequeno quarto-e-sala do único habitante daquele local permaneciam entreabertas.
Depois de chamar pelo homem duas ou três vezes e não obtendo resposta, o corretor foi até a porta que dava acesso à cozinha, pelos fundos do casarão, a fim de fazer o levantamento final. A porta não estava chaveada. Naturalmente, como se estivesse pedindo licença e sem saber bem o motivo, ele bateu antes de entrar.
Abriu devagar a porta e, assim que adentrou, ouviu vozes de pessoas.
Novamente pediu licença. Sem resposta. Caminhou até a próxima porta que dava acesso à sala de jantar. Não viu ninguém. As pessoas continuavam confabulando. Ele ouviu o som do que seria o tilintar de louças, talvez xícaras e pires. A conversa era discreta, porém animada. Deu mais dois passos à frente. Voltou a pedir licença.
Subitamente a conversação cessou e o silêncio tomou conta. Segundos depois percebeu o barulho dos saltos de sapatos a bater no piso de mármore. Ele acelerou a passada. Chamou por alguém. Ouviu que agora subiam as escadas rapidamente.
Sentiu a própria respiração acelerada. Assustado com aquela surpresa e antes de chegar à escada, recuou até a cristaleira, à entrada da sala de jantar. Procurou o interruptor a fim de acender alguma lâmpada. Acionou-o e logo o ambiente foi tomado pela luz do único lustre da sala. Sentiu alívio. Consultou o relógio.
Na agenda do celular encontrou o número do telefone do jovem que o acompanhara dias atrás durante a primeira visita. Teclou nervoso. Não obteve resposta. Tentou o número de um colega de escritório. Sem sucesso.
Guardou o celular no bolso da calça e pensou que deveria seguir em frente, afinal, amanhã, ele tinha reunião com os empresários, prováveis investidores, e as informações que ele necessitava tinham que ser obtidas.
Tudo quieto. Ele decidiu que iria seguir em frente.
Cuidadosamente chegou até o início da escada iniciando a subida. Já atingira a metade quando o celular tocou. Desajeitado enfiou a mão no bolso da calça e, quase sem tirar os olhos do corredor superior, olhou para o visor do telefone que piscava. Cores se alternavam num pisca-pisca que logo se apagou.
O corretor lembrou que deveria trocar aquele celular, pois desde que ele deixara o aparelho cair dias atrás, quando esteve na casa com o jovem herdeiro, o problema se repetira várias vezes. Parte da agenda de contatos desaparecera do aparelho e as chamadas, como aquela que recém acontecera, vinham se repetindo.


A BIBLIOTECA

Agora ele estava no corredor do segundo piso e se dirigia para a biblioteca. A madeira do piso estalava contrariando o desejo do corretor porque aquele barulho irritante, por mínimo que fosse, anunciava sua presença. Porém, tentou se acalmar. Afinal somente ele estava no velho casarão, apesar de ele mesmo ter dúvida.
Na biblioteca ele deveria tirar fotos que iriam para o catálogo de informações. Quando escolhia o melhor ângulo viu numa das prateleiras alguns livros que lhe chamaram atenção.
Abriu o que restara da cortina para que a pouca claridade da rua entrasse pela porta cujos vidros estavam opacos por conta da poeira que se fixara. Pegou o exemplar com cuidado. Não conseguia identificar o título. Abriu-o constatando, atônito, tratar-se de um raro volume da Bíblia. Na próxima página amarelada leu que era um incomum exemplar impresso por Gutenberg e a data indicava 1445.

O corretor tinha opinião firmada quando o assunto era religião. Não acreditava
em nada que não pudesse ser provado através da ciência e não aceitava o
comportamento daqueles que não contestavam e deixavam a razão de lado para
acreditarem em dogmas e adorarem estátuas de gesso. Os ignorantes se
submetiam àqueles padres e pastores que se diziam os únicos capazes de abrir as
portas para o paraíso.
Para ele religião era coisa de gente inculta, frágil e insegura.
Ao mesmo tempo ele detestava a falsidade e a imoralidade dos padres.

O livro sagrado - como dizem os crentes - era uma obra muito importante e ele achou melhor esquecer o ódio que o dominava. Mas como poderia se apropriar de uma coisa que não lhe pertencia? O herdeiro deveria saber da existência daquele livro.
Porém, o cara que fosse à merda, pensou. Ele já tinha o bastante!
O corretor colocou o volume na pasta que carregaria com cuidado extremo.
A Bíblia de Gutenberg valeria um bom dinheiro em qualquer antiquário.
Posicionava-se para retomar o melhor ângulo para a foto; quando dava um passo atrás foi surpreendido pela voz do caseiro que, furioso, dizia que era proibido tirar fotos do casarão.
O corretor, ao perceber que era o negro caseiro, sentiu alívio e raiva ao mesmo tempo.
Com os braços abaixados segurava a máquina digital na mão direita.
Apontou o dedo na direção do rosto do caseiro dizendo: - tu não sabes de nada, homem! Como tu podes me dar ordens? Tu és só o caseiro. Agora saia e me deixe seguir com o meu trabalho.
O negro permanecia quieto e frio.
Porém, o corretor ainda tinha que saber sobre as vozes. Não poderia dispensar o velho e recuou dizendo: - Está bem, caseiro. Estou nervoso porque ouvi vozes lá em baixo e barulho de gente subindo as escadas. Procurei mas não encontrei ninguém. O que tu sabes sobre isso?
- Guarda tua máquina, corretor; e vá embora deste casarão.

Aquele negro estava indo longe demais, pensou o corretor que faria mais uma tentativa, afinal, ele se considerava superior e persuasivo.
- Noto que tu não queres colaborar. Pois fique sabendo que eu estou tratando de um negócio milionário. Ganharei muito dinheiro com a venda deste sobrado de merda.
Aqui nesse local será construído o melhor edifício residencial da cidade. Ah! – exclamou o corretor dando as costas e gesticulando – tu nem sabes o que é morar num apartamento, ainda mais com mil metros quadrados e mais, logo tu terás que procurar um chalezinho lá no fim do Guajuviras – falou em tom de deboche.
- Eu vi o senhor colocar a Bíblia do meu patrão dentro da pasta, corretor!
- E daí? – perguntou o corretor virando-se novamente.
- Ela vale muito dinheiro, corretor. Meu patrão me falou. E é da família.
- Teu patrão tá cagando pra essas coisas, caseiro. Ele não precisa de uma Bíblia. Aliás, ninguém precisa de uma bosta destas. Só os trouxas acreditam nesse monte de histórias inventadas por alguns gananciosos e mentirosos.
- Então devolva o livro, já que o senhor acha que não serve pra nada, senão...
- Senão o que, caseiro? – perguntou o corretor.
- Faças do jeito que quiseres, mas estou lhe avisando. Esqueça que este sobrado existe. Procura outro terreno. Aqui não é um bom lugar.

A tarde caia e quase já não havia mais luz natural. O corretor não suportava mais ter que discutir com aquele homem. Não conseguira concluir o levantamento e tão pouco saber sobre as vozes.
Talvez este último fato o incomodasse mais que a presença do negro, pois lhe trazia de volta um velho problema. A sua terapeuta alertara-o sobre a possibilidade de acontecerem momentos de incertezas.
Seriam aquelas vozes conseqüência da sua provável esquizofrenia? – pensou ele. Como não se considerasse um doente, abandonou aquela lembrança.

Sem dizer uma palavra o corretor guardou a máquina digital na pasta saindo da biblioteca em direção ao corredor para de lá descer a escada. Na metade da escada falou em voz alta para que o caseiro ouvisse: - cada macaco no seu galho – depois riu desconcertado, cruzando a grande sala até que deixasse o sobrado.
Já na calçada, logo que bateu o portão de ferro trabalhado por algum serralheiro artesão, o corretor olhou para a janela da biblioteca que se abria para a fachada para confirmar sua suspeita de que o caseiro lá se encontraria. Mesmo estando com a janela fechada o negro caseiro notou que o homem gritava, acenava e ria repetindo a frase: - cada macaco no seu galho.


O HERDEIRO

- Bom dia. Aqui fala o corretor que está encaminhando o negócio do sobrado Vila Formosa. Quero falar com o jovem felizardo proprietário daquela maravilhosa casa.
Pode passar a ligação – disse ele, de forma arrogante, à telefonista, que obedeceu.
- Olá. Bom dia. Como estão os contatos? – perguntou o herdeiro.
- Bem! Muito bem! Hoje tenho reunião marcada para tratar da visita ao sobrado. Diga ao caseiro que limpe o terreno e retire o lixo. Não será interessante que os empresários encontrem o local do jeito que está.
- Tu estiveste ontem lá no sobrado, pelo que fui informado.
- Vejo que o negro já se meteu novamente. Aliás, ele se comporta com se fosse o dono do sobrado. Eu tive que...- antes que continuasse opinando o corretor foi interrompido pelo herdeiro.
- O caseiro é homem de minha confiança. É idoso e merece todo o meu carinho e respeito.
- Por favor, homem! O negro é um metido! Eu não consegui terminar o levantamento dos dados que eu necessitava por causa dele. Seguiu-me o tempo todo pelo sobrado!
- Eu sei. Ele me falou – disse o rapaz de forma reticente.
- O velho é um pentelho. No dia da visita ao sobrado não quero vê-lo por lá. Ele poderá atrapalhar e dizer coisas que não nos interessa. O velho que vá pra casa de algum parente.
- Ele não tem parente algum. Eu conversarei com ele. Faz o teu trabalho que eu tratarei do assunto. Mais alguma coisa?
- Está bem! Não vou perder meu tempo falando de um preto-velho – disse o corretor jocosamente.
- Até logo – falou o herdeiro irritado encerrando o diálogo e desligando.


O CORRETOR

A enorme Figueira cravada no meio da alameda fora preservada. Não fossem as exigências legais a árvore já teria sido derrubada em nome do desenvolvimento e do progresso.
No apartamento duplex, no andar de número 18 do prédio construído no terreno onde estava a figueira, era onde o corretor vivia.
Morava só. A auxiliar de limpeza fazia duas visitas por semana e não tinha muito trabalho, pois o corretor era exageradamente cuidadoso. Exigia que nada fosse retirado dos lugares; os talheres, louças e apetrechos de cozinha deveriam ser desinfetados com álcool nos dias de faxina. Toalhas de banho e roupas de cama deveriam ser trocadas semanalmente.
Em nenhuma hipótese ele permitia que as janelas fossem abertas; excepcionalmente para limpeza, mas logo deveriam ser fechadas, inclusive as cortinas.
Não havia tapetes porque, segundo o corretor, causava alergia, além de acumular pó.
No mezanino estava a suíte onde ele também utilizava como sala de home-cinema.
Na parede em frente à cama, sobre o balcão cuidadosamente projetado estava a televisão com tela plana.
O quarto era o refúgio para aquele homem que já não pensava em relacionamentos que lhe trouxessem compromissos. Às vezes convidava garotas de programa para noites de sexo. Ele não trocava uma palavra se quer com as mulheres e, antes de tudo começar, exigia que a garota não se expressasse de forma alguma, nem por fingimento.
Quando estava com uma garota ele satisfazia seu próprio desejo sem se importar com a parceira.
Antes mandava que ela se despisse enquanto ele a observava deitado na cama masturbando-se; depois a garota deveria se entregar de forma submissa obedecendo às ordens por ele emitidas; o sexo acontecia sempre da mesma maneira e não ia além de toques e sexo oral que ele exigia que a companheira praticasse somente nele.
Ele não as tocava nem com as mãos nem com a boca. Mantinha distância e detestava perfumes e cheiro de cigarro.
Logo que a garota terminava seu trabalho ele indicava o caminho do lavabo que ficava no pavimento inferior, próximo ao hall de entrada do estúdio, para que ela lavasse a boca e as mãos, se quisesse. As toalhas usadas no lavabo pelas garotas de programa eram colocadas em um saco de lixo plástico e jogadas fora pela faxineira nos dias de limpeza. O lavabo deveria ser desinfetado com álcool.
A roupa de cama ele retirava substituindo-a por um jogo de lençóis e fronhas limpas.
Tendo cumprido parte do ritual de sexo por ele traçado o corretor tomava demorados banhos de imersão na banheira SPA da suíte quando se masturbava intensamente imaginando estar trepando com a garota que saíra há pouco.
Mais tarde, sentindo-se relaxado, ele então assistiria aos telejornais e depois aos DVD´s de filmes policiais, seus preferidos. Encomendava comida chinesa pelo telefone e bebia cerveja inglesa.
Dormia tarde e acordava na metade da manhã do dia seguinte quando retomava a rotina de contatos e visitas aos clientes e imóveis.
O seu escritório era no próprio apartamento onde ele tinha todas as ferramentas modernas de comunicação e informática.

Ele fora casado e, durante os três anos nos quais esteve com sua mulher, viveu um intenso amor rompido pela súbita morte da companheira quando o avião em que ela viajava sofreu violento acidente no momento da aterrissagem em São Paulo.
Não conseguiu se recuperar do trauma. Buscou ajuda médica, porém não assimilou as observações dos médicos deixando de lado os tratamentos e remédios.
Sentia-se mais seguro sem eles. Desde então passou a ter um comportamento definido por regras pessoais e agia rigidamente de acordo com os novos princípios que adotara.
Experimentava uma autoconfiança cega e não admitia ser criticado, enquanto enxergava somente os defeitos nas pessoas com quem tinha contato. Não media palavras e, muitas vezes, expressava-se intempestivamente sendo arrogante e prevalecido.

Era um profissional eficiente, apesar do comportamento desequilibrado. Pouco atilado, derrubava negócios de colegas e por isso, não tinha muitos amigos.
Gostava de carros antigos com os quais gastava fortunas recuperando-os avidamente.


A REUNIÃO ADIADA

Na metade da tarde o corretor foi avisado pelo celular que a reunião com os empresários havia sido cancelada e transferida para dois dias adiante.
Ele não achou de todo ruim, pois teria tempo para voltar ao sobrado e concluir o levantamento dos dados para o relatório de venda.
Na manhã seguinte, ele se deslocaria até o sobrado. Encontrou o portão da entrada principal fechado com corrente e cadeado. Acionou a campainha insistentemente, sem obter resposta.
Caminhou de um lado para o outro e, ao olhar para a janela da biblioteca, teve a impressão de ter visto alguém espiando por trás da cortina.
Logo pensou que o caseiro estaria dificultando o acesso à casa. Pensou em ligar para o celular do herdeiro, mas desistiu.
Sentindo-se desafiado diante daquela situação e irado com caseiro, pois desconfiava que a dificuldade fosse provocada pelo negro, o corretor procurou ingressar pelo acesso lateral através de um velho portão que se abria para a rua. Ele sabia que os portões velhos tomados pelos cupins não apresentariam resistência aos chutes e empurrões.
Dez minutos depois o corretor já se encontrava dentro do sobrado.
Chamou pelo caseiro e como não obteve resposta subiu a escada com a idéia de chegar à biblioteca. Abria as cortinas para que pudesse tirar as fotos necessárias quando ouviu ser chamado pelo caseiro.
- Guarde a máquina, corretor. Eu já te avisei – disse o negro.
- Tu insistes, negro de merda – disse o corretor.
- Mais respeito, corretor – pediu o negro. – Saia já desta casa. Estou pedindo.

Tomado pelo descontrole emocional o corretor imaginava a figura do negro caseiro aos poucos se transformar. Agora ele enxergava, a sua frente, o padre, diretor do internato onde ele passara boa parte da adolescência como interno num colégio de São Leopoldo.
O padre era um negro exigente e rígido. Punia os internos por causa da cama mal-arrumada ou porque a resposta sobre passagens da bíblia não foram respondidas corretamente.
Castigava-os! Desrespeitava-os! De alguns meninos exigia a rendição imoral aos abusos sexuais. Levava-os para o quarto e subornava-os dispensando-os de prolongados castigos em troca de carinhos obscenos.
Confuso e descontrolado o corretor investiu na direção do negro. Empurrou-o fazendo o velho cair no corredor em frente à porta de acesso à biblioteca. Desferiu-lhe um poderoso chute no rosto e, aos gritos ofendia-o.
Sangrando por conta do profundo corte na testa, o negro indefeso procurava proteger o rosto. O corretor seguia batendo sem dó e com muito ódio. Para ele era no padre em quem batia com os chutes e socos.
O corretor só parou quando ouviu o estampido de arma de fogo. Largou a camisa rasgada pela qual sustentava a cabeça do negro já quase desfalecido e cambaleou.
Deu dois passos para trás.
- Ele me desrespeitou. Achou que poderia me dominar. Ele queria me obrigar a fazer o que eu não queria– disse apontando para o negro.
Com a visão embaraçada viu que o herdeiro portava uma pistola. Sentiu-se zonzo. Instintivamente levou a mão à altura da barriga por causa de uma ardência que lhe provocava arrepios. A camisa ensangüentada denunciava que o ferimento fora grande. Encostou-se na parede. Sangraria até a morte.
O herdeiro deixou a pistola ao lado do corpo desfalecido do corretor tratando de levar o caseiro até o banheiro para lavar o ferimento.


A POLÍCIA

Assim que percebeu a chegada da polícia o herdeiro retornou à cena do crime a fim de recolher a pistola. Não a encontrou. Misteriosamente a arma desaparecera.
Para os agentes policiais o herdeiro contou que foram atacados por um homem, o mesmo que dera o tiro mortal no corretor que, segundo o relato deles, reagira tentando atacar o ladrão. Tudo foi confirmado pelo caseiro que ainda mostrou aos policiais o ferimento na testa.


O TOMBAMENTO

Um mês após o assassinato do corretor o sobrado Vila Formosa foi considerado prédio histórico e, portanto, não poderia ser mais demolido.

domingo, janeiro 06, 2008

AS ARTES E A IGREJA


Lendo sobre a produção artística da humanidade observei que a Igreja já foi a maior patrocinadora dos movimentos artísticos.
Embora ditando as regras e limitando a criatividade de pintores, arquitetos, músicos e interferindo na literatura, vemos que sem o incentivo da Igreja o homem não teria contado toda a história que acumulamos.
A própria Bíblia é considerada uma das maiores obras literárias já produzidas, independente de alguém duvidar da veracidade ou venerabilidade do conteúdo dos livros.
Em determinados períodos da história da humanidade pouco se produziu em termos de arte, justamente porque o homem estava envolvido em guerras, na busca de domínio territorial. Não havia tempo para as artes.
Mais adiante o artista se liberou encontrando seu próprio caminho fazendo arte utilizando o intelecto como agente principal assim como acontece na arte contemporânea.
Desenvolveu técnicas e aprimorou-se até chegar a fazer arte virtual sendo esta, talvez, a forma mais moderna de expressão artística.
A música passou a ser eletrônica; a pintura pode ser feita numa mesa digitalizadora; os livros cabem num disco digital e a arquitetura é “ajeitada” pelos programas de computador.
Pois a Igreja permanece seguindo regras rígidas com o mesmo “desenho” medieval. Nem por isso ela perdeu a capacidade de mobilizar uma multidão de fieis como pudemos observar quando o Papa apareceu durante as festividades de final de ano.
As influências ficam evidentes nas pinturas, nas esculturas, na arquitetura, nas praças públicas, na confecção de instrumentos musicais e nos cantos corais.
Assim, o papel da Igreja acabou, como patrocinadora das artes, contando ou fazendo um lado da história da humanidade através dos ícones que permanecem e permanecerão sendo utilizados por muito tempo.
Obra: "Creation of Adam" - 1.510 - Capela Sistina - Cidade do Vaticano - Michelangelo.


terça-feira, janeiro 01, 2008

PARABÉNS A MIM MESMO

Cheguei aos 54 neste 01-01-08!
Como eu costumo dizer que tenho 64, todos me acharam muito bem para a idade.
Aos amigos, obrigado pelos e-mail.