segunda-feira, janeiro 24, 2011

FRAGMENTOS DE UM CONTO...


A história que conto agora aconteceu em 1954 numa vila localizada no interior de um município do Rio Grande do Sul, no Brasil meridional.
A vila foi fundada por volta de 1.890 por imigrantes alemães. As casas e instalações foram construídas num vale cercado de montanhas. Um rio margeava a cidade de ruas poeirentas, porém muito arborizadas. A vila não tinha mais do que 1.500 habitantes.

O ABORTO

                   Karl Zander tinha um consultório muito bem montado localizado próximo ao Hospital Geral do distrito de um município próspero.
O lugar era bastante industrializado e tinha a economia baseada no setor coureiro.
O gado da região era criado com a finalidade de fornecer o couro que, depois de curtido, abastecia as fábricas de calçados. Quase todos os moradores trabalhavam nas fábricas.
                   As clientes do Dr. Karl eram as mulheres grávidas. Em 1954, Zander criou um sistema inovador que firmava um convênio com as fábricas, o qual, dava aos funcionários – homens e mulheres -, perante um pagamento mínimo do valor da consulta, a condição de serem atendidos até o nascimento do bebê.
                   O doutor Zander gozava de excelente conceito entre seus pacientes. Ele era o único médico na região.
                   Pois, foi durante um procedimento médico que o doutor Karl Zander precisou tomar uma decisão rápida que lhe trouxe muita dor de cabeça.
                   Numa noite, já em casa após um exaustivo dia de consultas e cirurgias no hospital, bateram à porta de sua casa. Zander ouviu a voz de um homem que o chamava desesperadamente.
                   - Doutor, por favor! Venha ver minha filha! Ela está mal, muito mal!
                   - Acalme-se, homem. Onde ela está?
                   - Venha comigo. Vamos até minha casa em Lautertberg.
No caminho ele contou que a filha completara 14 anos e ficara grávida de um rapaz, guarda-livros na vila vizinha. Se conheceram há seis meses durante uma festa, namoraram e ela teria sido seduzida pelo jovem que, aliás, desapareçera depois de tomar conhecimento da gravidez da namorada.
Após contar com detalhes o relacionamento dos dois jovens, o pai, muito nervoso se apresentou.
                   - Desculpa. Sou Lothar Lenner. Tenho um empório na Linha 17, do outro lado de Lautertberg.
                   Depois de uma hora de viagem por uma estrada de terra, em cima de um pequeno caminhão, chegaram à casa de Lothar. Logo os cães se aproximaram e latiram em volta dos dois homens.
Ouvia-se o barulho do gerador próximo ao galpão que não se conseguia enxergar devido à noite. Fazia frio e a chuva fina caía.
                     Subiram os degraus da escada de madeira que dava acesso à varanda e Zander foi convidado a entrar.
                    - Esta é minha mulher Helga, doutor; sirva qualquer coisa quente para o doutor, mulher, - e dirigiram-se para o quarto onde estava a filha de Lothar.
Ao lado da menina, sentada na cama, uma mulher tratava de molhar o pano na bacia com água morna e de pronto colocava sobre a testa da jovem. A bacia, em cima do criado-mudo, era abastecida de água que Helga trazia em uma chaleira de ferro.
Lothar pediu que a mulher se afastasse para que o doutor pudesse examinar a adolescente.
Zander observou que o estado da menina era muito grave. Fez os primeiros exames e pediu para ficar a sós com a jovem. Por cerca de cinco minutos ele examinou com cuidado aquela pequena.  Em seguida pediu para ficar a sós com Lothar.
                     - Sua filha está muito debilitada. Ela está correndo risco de morte. Tenho que levá-la para o hospital e, bem, tenho que fazer o aborto. É a única salvação.
                     - Doutor, saiba que eu não fui buscá-lo para ouvir falar em aborto. Sou totalmente contra. O senhor encontre outra solução e que seja rápida e eficiente. É a vida dela que está em suas mãos e que nada de pior aconteça com ela. Eu não sei como  reagiria num caso extremo, doutor Zander.
                      - Lothar, o médico aqui sou eu e o único que pode saber o que fazer. Portanto, se você quiser a sua filha viva, autorize esse procedimento, por favor!
Depois de pensar por alguns segundos, Lothar olhou para Zander e dissse:
                      - Está bem. Mas, se minha filha morrer..., - e saiu do quarto batendo as botas no chão de madeira.
                      Lothar, Zander, Helga e a menina chegaram ao hospital depois de quase uma hora de viagem.
Já na sala de cirurgia, a jovem foi submetida aos procedimentos médicos. A intervenção demorou quarenta minutos.
Os pais, apreensivos, haviam convocado um pastor para lhes dar apoio espiritual naquele momento tão difícil pelo qual estavam passando.
                     Zander saiu da sala de cirurgia com a pior notícia. A garota havia morrido tinha pouco mais de dez minutos.
Lothar não se controlou e partiu para cima de Zander desferindo-lhe um potente chute. Zander caiu, batendo  a cabeça na parede. Lothar seguiu desfechando socos e tapas e, aos berros na sala de espera do bloco cirúrgico, gritava : - Assassino! Assassino! Você matou minha filha!


terça-feira, janeiro 04, 2011

A CARTA


PARIS, ANOS DEPOIS. (Carta a Roberto)

         Caro amigo Roberto,
         Aqui estou eu debruçado sobre a minha prancheta, às cinco horas da manhã. Faz calor e o verão parisiense é indigesto e sem graça; gostaria de estar em Copacabana bebendo chope gelado e olhando para o mar, mas como sempre falei, a vida está sempre nos colocando à prova. Sinto saudade do Brasil; estar exilado, mesmo em Paris, é desumano.
        Não tenho amigos por aqui e juro que, sem eles, eu sou ninguém. Por isso o meu tempo eu gasto no trabalho, em desenhos e leitura; tenho ouvido muita música.
Ganhei de brasileiros que chegaram do Rio, e passeiam pelo Velho Mundo, dois LPs  com o melhor da bossa nova. Muito bom!
        Meu escritório fica na Champs Elysée; aqui da janela eu já posso ver o francês se movimentar para o trabalho, escolas e escritórios; porém eles são muito diferentes de nós brasileiros; andam olhando para eles mesmos!
       Terminei, nesse momento, o croqui da Sede do Partido Comunista Francês; está muito bonito; acho que irão aprovar. Quero que você crie algo para os jardins. Vou mandar as plantas com os desenhos e fotografias do local.
       Lamentavelmente Candim se foi (e já tem cinco anos!); se estivesse vivo, eu daria para ele uma parede enorme que certamente viraria um belo mural!
       Responda minha carta, por favor!
       Paris, outubro...
      Assinado: Oscar

       Recado à hiena da censura: se você abrir essa carta antes que ela chegue às mãos de meu amigo, saiba que eu acho você um grande merda!