terça-feira, outubro 20, 2009

HARMONIZANDO RÓTULOS

As confissões que meu amigo Jerônimo Jardim registrou no seu blog - http://jeronimojardim.zip.net/ - fizeram-me repassar minha história de aprendizagem musical.
Antes tenho que dizer: confesso ter me apropriado do título do texto do Jerônimo. Que ele permita.

Aconteceu que de meu pai herdei o gosto pela música erudita, pelo jazz, blues, canções italianas, alemãs e pelas gravações, sempre em vinis de 78 rotações, de bandas militares.
Por isso aos domingos eu não perdia uma apresentação se quer dos Concertos para a Juventude que aconteciam no teatro da Reitoria da Ufrgs.

Por minha mãe fui apresentado ao samba de raiz quando ela me fazia ouvir Ataulfo Alves, Cartola e Pixinguinha. Ela passava os dias cantarolando canções populares de Agnaldo Rayol, Cauby Peixoto, Peri Ribeiro, Jair Rodrigues, Clara Nunes e Miltinho. Muitos boleros eu tive que ouvir e tocar no violão. Talvez sua principal referência fosse Aracy de Almeida ou ainda Elizeth Cardoso.
Musica para ela era alimento.

Tempo depois minha irmã Marcia colocou na “eletrola” um “compacto” dos Beatles, depois dos Carpenters, Credence, Stones, Joe Jeffrey e então entrei para o mundo do rock e do pop. Ainda ela seria a responsável por me fazer conhecer a bossa nova através das rodas de violão e dos festivais universitários; também por ela conheci a musica coral no dia em que passei no teste aplicado pelo maestro Pablo Komlós conquistando um espaço como barítono do coral da URGS.

Quando me achava abastecido conheci uma musica gaúcha inovadora em sua sonoridade.
O musico que às vezes se apresentava com o violão Ovation nos churrascos de domingo na casa de meus pais era Jerônimo Jardim. As harmonias me encantaram.

E, como fez o meu amigo no seu blog, tenho que confessar: fui discriminativo, pois evitei o rótulo da “musica sertaneja”.
Portanto, receio ter que voltar às minhas confissões mais adiante já que ainda não administro muito bem o rap, os grupos de pagode, funk e alguns outros estilos meramente comerciais que ouvimos por aí.

Tentarei harmonizar os rótulos.

sábado, outubro 17, 2009

O VENTO E AS IDEIAS

Perguntou-me um amigo:
- De onde saem as ideias?
Pois é: de onde? – pensei. Eu respondi que...sei lá....
- Como, sei lá? – indignou-se o cara.
Eu não soube explicar, mas lembrei que Érico Veríssimo disse que “as ideias aparecem com o vento”.
Às vezes penso que as histórias, os desenhos, as canções e essas imaginações todas estão guardadas num canto da cabeça fazendo hora; noutras vezes fico assustado com a quantidade delas. Puro fervilhamento!
E quando leio boas histórias fico entusiasmado.
Cenários, personagens, barbas, cabelos, olhos mais ou menos verdes ou azuis, mulheres lindas e feias, montanhas, rios, penumbras, sombras, praias, campos, traições e tramas... E por aí vamos. Tudo desfila por trás dos olhos; nos bastidores; detrás da câmera.
Como explicar?
É um louco quem inventa e conta histórias? Solitário ser humano? Esquizofrênico? Egoísta porque não conta todas que conhece? Arrogante? Altruísta porque conta algumas?
Sei lá!

terça-feira, outubro 06, 2009

LISCA - O domador

Julho ou agosto. Fazia muito frio ao pé da Serra do Caverá. O vento pampeano não encontrava poeira alguma para levantar. A terra úmida deixava a estrada embarrada e escorregadia. Do mata-burro até a sede da Estância Santa Leonida, Lisca levava, a pezito, um pouco mais de um quarto-de-hora. Bota de cano alto, poncho surrado, uma boina de lã e a velha mala de garupa, que agora descansava sobre seu ombro direito. O lado esquerdo do negro Lisca era mais arriado que o outro. A mala escorregava e caía..
De tantas quedas sofridas, o negro já havia quebrado quase todos os ossos do corpo. Mas, ainda assim era forte como o redomão que, quando avistava o peão domador ponteando na coxilha, resmungava entre corcoveios e relinchos.
Atado no palanque e levando uma sova atrás da outra, entre gritos de “te-acalma-redomão”, Lisca suava para dominar o animal. O crioulo então, desatou as rédeas do palanque, encilhou o maltratado cavalo, montou-o e riscaram em direção à taipa, que era rodeado por corticeiras. E foi numa delas que o corcel deu de cabeça, furioso que estava pelas surras que tinha levado do negro. Logo sangrou pelo corte provocado em consequência do esbarro cometido. O tronco arrancou-lhe um pedaço do couro rosilho.
Próximo dali, embaixo de uma figueira centenária, Lisca derrubou o seu amigo ferido, algemou-lhe as patas com tiras de couro e iniciou a cirurgia. Costurou a testa do animal depois de passar um “splay” - como Lisca falava - para amenizar a dor do bicho. Com o joelho no pescoço do cavalo, examinou o tordilho. Lisca, então, o batizou: - Ele vai se chamar Remendo, o Redomão.
Anoiteceu. Depois de tomar uns mates com os companheiros de lida e lasquear a paleta de ovelha aquecida no fogo de chão, Lisca pediu licença e saiu do recanto onde proseavam seus amigos.
Pegou uns pelegos, o poncho, a mala de garupa e foi para baixo da figueira. A cachorrada saiu atrás. Recostou-se no tronco, fez um palheiro e descansou sua adaga bem ao lado para um causo de emergência. Acendeu o cigarro, puxou uma daquelas longas tragadas, olhou para o nada e soltou devagar a fumaça.
O frio e o vento não lhe incomodavam. Sentiu-se até muito bem. O frio, acalmava-o; o vento trazia o cheiro da terra e do campo. Quanto mais forte o vento soprava, mais claro ele ouvia o barulho dos quero-queros e siriemas cuidando da noite.
O som de uma oito-baixos vinha do galpão, misturado às risadas da peonada ouriçada pelos tragos que bebiam. A guampa rolava de mão em mão, quase discreta.
Lisca se perdeu em pensamentos no meio da fumaça de seu palheiro. Não era dado a longas conversas, a não ser consigo mesmo. Hoje o negro completava 52 anos de vida e 30 de doma.
Durante muito tempo Lisca levou uma vida nômade, “gáucha” de verdade! De estância em estância na época da esquila, e de invernada em invernada, domando cavalos e éguas pelas terras dos doutores patrões. Era seu aniversário e nada de churrascada, nada de guampas encharcadas de canha, nada de mulheres.
Na sua lembrança surgia a imagem de sua mãe. De certo que “Dona Lilica” estaria preparando a janta na sede da Estância do Paço, bem longe dali. De seu pai veio-lhe a figura de um negro com braços tão fortes que seria capaz de derrubar um sobreano com um único tapa.
Mal e mal conviveu com seu pai. O “Negro Valdo”, como era chamado, morreu depois de ser picado por uma cruzeira quando percorria o campo, numa noite quente de verão, atrás de ladrões de gado. Seu pai não resistiu e morreu quando Lisca tinha 10 anos. Aos 12 saiu para a lida e, de verão em verão, visitava Dona Lilica.
Uma dor forte na perna esquerda fez o negro Lisca interromper seus pensamentos. A dor era sua velha conhecida. Foi de um tombo que o fez “cair no chão”. O osso grande da perna se quebrou em duas partes. A ponta de um deles rasgou o couro e ficou pra fora. O sangue jorrava pra todo lado.
Na época da quebradeira Lisca domava cavalos em uma estância que ficava do lado de lá da fronteira. O campo dos uruguaios ficava longe de tudo. Não havia recurso. O único disponível, na hora da fratura vinha de uma parteira que entalou a perna do negro Lisca com pedaços de lenha usadas para aquecer as estufas e salamandras.
Lisca se curou. “Ficou mal juntado”, explicava o negro.
Aos 52, Lisca fazia um balanço de sua vida. Sabia que era um dos melhores domadores da fronteira. Havia domado “uns quantos” cavalos e éguas. Nunca fizera as contas e, quando um ou outro gaúcho lhe perguntava quanto tinha juntado de dinheiro, Lisca desconversava e bebia mais um gole. Mas quando lhe faziam um elogio, o negro ficava mais feliz que cusco em churrascada domingueira. Aí, contava daquela doma e do outro tombo e da égua que lhe quebrou a perna, e mostrava a cicatriz e o calombo que aparecia na canela.
Nessa noite no entanto, Lisca estava meio malito. Sentiu-se triste, confuso, sem explicação. Foi até o galpão, deu de mão na primeira guampa de canha que avistou e voltou para sua figueira. Um ovelheiro havia deitado sobre seus pelegos. No primeiro momento, Lisca teve vontade de correr o laço no guaipeca, só que hoje, Lisca estava diferente. Sentou-se ao lado do Peludo, passou a mão pela cabeça do cusco e concluiu que ali estava um companheiro fiel.
A oito-baixos tocava uma valsa triste. Lisca chorou.
As lembranças de seu pai e de sua mãe, os seus 30 anos de lida, “as quantas domadas”, as mulheres que teve e as que não teve, o dinheiro que não ganhou, a gaita soando ao fundo, os quero-queros e o vento fizeram Lisca sentir um pouco de frio.
Na verdade ele não sabia o que estava lhe acontecendo; pelo que se lembrasse, nunca havia ficado tão triste como agora... Ficou pesaroso quando morreu o “Doutor João”, seu patrãozito da Estância do Paraíso; outra vez ficou magoado quando mataram algumas cabeças do plantel de primeira dos correntinos... mas, desse jeito de agora, Lisca nunca tinha ficado.
No seu balanço, Lisca concluiu que, de tudo que teve, lhe sobrara solamente um cavalo, o Remendo, os pelegos e trapos, uma adaga, um ovelheiro e...nada mais! Acabou emborcando a guampa e tomou a canha até o fim. Sentiu-se menos triste.
A oito-baixos se aquietou. Ele, virou-se, olhou na direção do galpão e viu apenas a luz do lampião na porta de entrada. O cheiro da lenha queimando vinda da lareira da casa grande, fez Lisca respirar fundo e fechar os olhos. Sentiu menos frio. Adormeceu encostado no Peludo.

Nota do autor: conto premiado em 2007.