Na safra de algodão, Oriovaldo trabalhava duro! Acordava e logo dependurava o saco de linhagem nas costas
largas no qual colocava o algodão que colhia.
A plantação ocupava uma grande área
da Fazenda Brilhante no interior de um pequeno município do Centro-Oeste.
Durante o dia o calor era intenso e
seco e o vento, em certas horas do dia, era insuportável!
Oriovaldo não tinha muitos problemas com a rudeza do clima. Nasceu e se
criou entre plantações de soja e algodão, tanto que, no meio da tarde, soprava
o vento que só trazia um inconveniente: a poeira vermelha e muito fina que penetrava narinas à
dentro causando o único desconforto para ele.
Mas ocorria outro fenômeno: quando a
terra seca baixava o vento trazia junto uma enorme nuvem de moscas brancas. Uma
verdadeira praga! Pouco ou quase nada se podia fazer para evitá-las.
Vez por outra Oriovaldo tinha que aplicar na lavoura um veneno muito
forte e altamente tóxico que tinha a função de
matar as moscas pentelhas.
Experiente no assunto, Oriovaldo,
com 35 anos era num negro forte e, de tão preta que era a sua pele, chamavam-no
pelo apelido de “Azulão”.
Ele já não se incomodava mais com este
fato, porém sempre que tinha uma folguinha, ficava a pensar como seria a vida para ele se branco ele
fosse!
Ah! Aí estava o sonho do negro
Azulão! Queria ser pelo menos por alguns instantes um sujeito de pele branca.
Chegou a pensar que até sentiria menos calor por causa da nova cor.
Assim, Oriovaldo sonhava e sonhava...
Na realidade era o trauma de Oriovaldo.
Numa tarde muito quente, quando Oriovaldo estava em plena colheita ouviu
o chamado de um catador que estava próximo. Prontamente o negro foi ao encontro
do colega. Ao se aproximar viu que havia acontecido uma grande tragédia.
- Acho que o moleque morreu; ele caiu de uma vez só, - disse o catador
de algodão.
Ali estava o corpo entre flocos de
algodão, poeira e moscas brancas que voavam de um lado para o outro e, de vez
em quando, pousavam sobre o rosto do garoto desacordado.
Carregado até o posto de saúde ficou
atestado pelos médicos que o moleque morrera do coração.
Mais uma tarefa para Oriovaldo:
tratar do velório.
O negrão fazia de tudo para agradar aos patrões. Realmente era muito
prestativo.
Então, Oriovaldo varreu a sala,
colocou os bancos para os parentes e amigos, trouxe uma bombona daquelas de plástico
cheia de água e ficou esperando o corpo chegar do necrotério.
Tudo ia muito bem durante o velório e Oriovaldo percebeu que poderia
sair para fumar um cigarrinho e tomar um pouco de ar, já que as coisas estavam
todas em seus devidos lugares.
Passou pela parentada do moleque,
ouviu o choro e as lamúrias de algumas mulheres, pediu licença e foi até a
cerca perto de um pé de manga
rosa-coração.
Foi quando um “pé-de-vento” soprou no
rosto de Oriovaldo dando-lhe uma sensação de alívio. Na verdade ele não andava
se sentindo muito bem. Desde a manhã daquele dia, depois que aplicou o veneno,
que o negro estava um pouco tonto e com um mal-estar que ia e vinha.
- Parece que comi muita pururuca com pinga, pensou Oriovaldo.
E, sentiu como que se o vento o
tivesse arrancado da cerca e levado seu corpo para cima. Sentiu-se voando. Via
tudo de cima; as pessoas chorando; outras conversando e tomando água por causa
do calor e viu o caixão aberto e o menino repousando para a eternidade. Tudo
parecia muito estranho para o negro.
Nesse instante Oriovaldo quis coçar o
braço, mas notou que o seu lado direito parecia mais com uma peça de seda bem
fina. Pareceu-lhe ser feito de um pano de algodão muito branco.
Oriovaldo assustou-se mais ainda
quando viu a sua imagem refletida na cruz prateada que decorava o velório.
- Sempre quis ser branco por uns instantes, mas não como uma mosca,
gritou Oriovaldo horrorizado!
Ninguém ouviu seu grito. Ele tinha
sido transformado numa mosca branca.
O veneno tóxico inspirado pelo negro durante aquela manhã e a picada de
uma das centenas de moscas que sobrevoavam o velório fez o Azulão virar uma
mosca! Uma mosca branca!
O velório seguia sua rotina. O cemitério ficava no fim da lavoura, perto de uma árvore de ipê-roxo pelo lado sul
da fazenda.
Já cansados de procurar e esperar pelo negro Oriovaldo, que era muito
amigo do finado moleque, e antes de colocar a tampa para fechar o caixão, os
parentes partiram para os atos finais de
encomendação do defunto.
Feito de madeira de pinus o
caixão mais parecia uma caixa de embalagem de frutas do que um caixão de finado.
O ritual seguia sendo cumprido normalmente e Oriovaldo, agora transformado
em mosca branca, pousou sobre o caixão. Quando se deu por conta a tampa estava
sendo colocada e o negro, ou melhor, a mosca branca foi forçada a alçar-se num vôo
suicida para dentro do caixão.
Oriovaldo tentou chamar a atenção das
pessoas para si. Porém ninguém o ouviu. Ele gritou, bateu as asas finas, tentou
voar enquanto a tampa começou a ser pregada! Ele entrou em desespero. A
escuridão tomou conta do lugar. Oriovaldo procurou voar, mas sempre terminava
batendo com a cabeça na madeira do caixão. O cheiro das margaridas que
envolviam o corpo embrulhou seu o estômago. Por um momento quase vomitou, mas
conseguiu conter-se até porque não queria lambuzar o finado.
Num instante, Oriovaldo percebeu que
havia uma fresta entre a tampa e a parte de baixo onde repousava o defunto. Aproximou-se
do pequeno orifício, espiou, novamente tentou gritar, bateu as asas freneticamente,
mas ninguém percebeu sua angústia.
Oriovaldo tentava raciocinar:
- Nunca pensei em ser uma mosca branca; sempre quis ser um branco;
jamais poderia imaginar que um dia eu ficaria preso dentro de um caixão de
defunto e com o defunto junto! E mais: daqui a um pouco eu serei enterrado com esse moleque.
Depois de passar alguns minutos ouvindo e espiando o reverendo proferir
as últimas palavras de enaltecimento ao féretro e distribuindo todas as bênçãos
aos presentes, Oriovaldo sentiu-se cansado. Precisava descansar, repousar. Não
tinha mais o mesmo vigor nas suas asas brancas; a voz do padre sumiu por
completo dando fim as despedidas.
Procurou então um lugar mais
confortável para poder recuperar as energias. Encostou-se e relaxou. Quando estava
quase adormecendo, tomado pela exaustão, sentiu uma movimentação estranha.
- Será que estão carregando o caixão? – pensou.
Mas a seguir conclui horrorizado que
o caixão não havia sido deslocado.
- Mas senão é o caixão então... E, soltou um berro de acordar até um
defunto!
O moleque havia mexido a mão e justamente
a mão onde Oriovaldo havia pousado.
Mais uma vez o negro tentou fugir e
terminou batendo a cabeça na tampa. Meio tonto voou sem rumo e acabou pousando,
forçadamente, no nariz do moleque.
- Aaaaaaatchimmmm!
Este foi o resultado da barbeiragem
de Oriovaldo!
O pouso forçado provocou o espirro
que foi ouvido num raio de quinze metros. A tampa do caixão foi arrancada em
função do deslocamento do ar e saltou como um foguete; bateu no ventilador de
teto e provocou a maior confusão na sala do velório.
Os convidados correram de um lado
para o outro como se fossem moscas tontas. Vasos com flores e bancos foram derrubados;
a bombona de água virou molhando o chão de cimento queimado; uma senhora de
oitenta e oito anos escorregou e ficou com as pernas arriadas. Um velho, de
noventa anos, viu a velha amiga que caíra, deixar a mostra as suas partes mais
íntimas e lembrou-se de quantas vezes transitara por aqueles caminhos... Deu um
suspiro e logo tentou sair do velório, mas antes bateu cabeça com o reverendo
que se aproveitou da humilhante posição da carola para conferir se tudo ainda
estava no lugar.
A mosca branca, ou melhor, Oriovaldo havia aproveitado o momento do “lançamento
de tampa de caixão” para voar o mais rápido possível para longe daquele lugar. Procurou
a primeira janela aberta e alçou vôo com
destino à lavoura. Fez um sobrevôo de reconhecimento e notou que o moleque
havia acordado.
Na realidade, ocorrera que a
insolação e o cheiro forte do veneno provocaram um rebuliço na cabeça do
menino. Cléberson não tinha morrido, então!
Passaram-se duas semanas e Cléberson, o moleque, agora totalmente
recuperado, sentou-se à mesa para o almoço com a família e seu mais novo amigo
- a mosca branca!
Oriovaldo e Cléberson haviam ficado
íntimos. Os laços dessa amizade foram selados por iniciativa de Cléberson que acompanhou
compulsoriamente, ao vivo e pessoalmente, os acontecimentos dentro daquele
caixão. Ele sabia da história de Oriovaldo, até mesmo pelo fato de que o moleque
era o único que conseguia ouvir o negro Azulão gritar e falar. Assim, o negro
acabou contando com detalhes a sua transformação.
Oriovaldo passava o tempo todo ao lado de seu amigo com quem tinha
momentos de muita alegria e felicidade. Os dois amigos davam-se tão bem que
passavam horas relembrando o fato ocorrido no velório e dobravam-se em sonoras
gargalhadas.
Pois foi num desses momentos de total distração que aconteceu a outra
tragédia!
A avó de Cléberson, a senhora que
havia escorregado no velório, recuperada
do tombo no dia da “ressurreição” de seu neto, aproximou-se cuidadosamente e,
com o chinelo na mão, desferiu um golpe certeiro naquela mosca branca que estava
pousada no ombro do neto.
- Essa nojenta já era, disse a anciã vitoriosa olhando para o inseto e
empurrando-o para o chão com a ponta do chinelo.
Cléberson olhou para Oriovaldo e não conseguiu acreditar no que havia
acontecido.
Tentou reanimá-lo sem sucesso.
Oriovaldo estava morto! A chinelada fora mortalmente definitiva.
Num gesto carinhoso Cléberson colocou Oriovaldo dentro de uma caixa de
fósforos pensando em fazer uma última homenagem ao amigo. A caixinha descansava
sobre um guardanapo branco que estava em cima da mesa de jantar.
Cléberson lembrou-se das conversas, risadas e dos passeios que faziam
quando não havia muito vento. Lembrou-se
do espirro que seu amigo Oriovaldo havia lhe provocado no velório.
Lembrou-se da confusão e da correria
das pessoas...
Cléberson decidiu que não iria chorar. Enrolou a caixinha no guardanapo
branco e decidiu que a levaria até a lavoura. Abriu uma pequena cova e enterrou
seu amigo ficando com todas as tristezas entranhadas na sua mente. Não chorou!
Naquela noite ele foi dormir tomado por uma enorme sensação de vazio. Demorou
muito para que o sono chegasse. Dormiu na rede de renda branca que ficava sob
uma mangueira no pátio da casa.
O dia
começou a nascer e Cléberson foi acordado por uns respingos que caiam no seu
rosto entristecido. Aos poucos começou a abrir os olhos. Mais um respingo, e
mais outro e outro...
Passou a língua pelo canto da boca e
sentiu o sabor do suco de manga-coração. Percebeu que um pássaro azul, quase
preto, estava bicando a fruta suculenta.
O
moleque acordou de vez, saltou da rede e falou baixinho fitando o
pássaro nos olhos e que agora cantava e batia as asas longas: - Azulão, é você
meu amigo!