domingo, novembro 27, 2011

ORIOVALDO E A MOSCA BRANCA



    Na safra de algodão, Oriovaldo trabalhava duro! Acordava e logo  dependurava o saco de linhagem nas costas largas no qual colocava o algodão que colhia.
A plantação ocupava uma grande área da Fazenda Brilhante no interior de um pequeno município do Centro-Oeste.
Durante o dia o calor era intenso e seco e o vento, em certas horas do dia, era insuportável!
    Oriovaldo não tinha muitos problemas com a rudeza do clima. Nasceu e se criou entre plantações de soja e algodão, tanto que, no meio da tarde, soprava o vento que só trazia um inconveniente:  a poeira  vermelha e muito fina que penetrava narinas à dentro causando o único desconforto para ele.
Mas ocorria outro fenômeno: quando a terra seca baixava o vento trazia junto uma enorme nuvem de moscas brancas. Uma verdadeira praga! Pouco ou quase nada se podia fazer para evitá-las.
   Vez por outra Oriovaldo tinha que aplicar na lavoura um veneno muito forte e altamente tóxico que tinha a função de  matar as moscas pentelhas.
     Experiente no assunto, Oriovaldo, com 35 anos era num negro forte e, de tão preta que era a sua pele, chamavam-no pelo apelido de “Azulão”.
Ele já não se incomodava mais com este fato, porém sempre que tinha uma folguinha, ficava a pensar  como seria a vida para ele se branco ele fosse!
Ah! Aí estava o sonho do negro Azulão! Queria ser pelo menos por alguns instantes um sujeito de pele branca. Chegou a pensar que até sentiria menos calor por causa da nova cor.
Assim, Oriovaldo sonhava e sonhava... Na realidade era o trauma de Oriovaldo.
    Numa tarde muito quente, quando Oriovaldo estava em plena colheita ouviu o chamado de um catador que estava próximo. Prontamente o negro foi ao encontro do colega. Ao se aproximar viu que havia acontecido uma grande tragédia.
    - Acho que o moleque morreu; ele caiu de uma vez só, - disse o catador de algodão.
Ali estava o corpo entre flocos de algodão, poeira e moscas brancas que voavam de um lado para o outro e, de vez em quando, pousavam sobre o rosto do garoto desacordado.
Carregado até o posto de saúde ficou atestado pelos médicos que o moleque morrera do coração.
Mais uma tarefa para Oriovaldo: tratar do velório.
      O negrão fazia de tudo para agradar aos patrões. Realmente era muito prestativo.
Então, Oriovaldo varreu a sala, colocou os bancos para os parentes e amigos, trouxe uma bombona daquelas de plástico cheia de água e ficou esperando o corpo chegar do necrotério.
     Tudo ia muito bem durante o velório e Oriovaldo percebeu que poderia sair para fumar um cigarrinho e tomar um pouco de ar, já que as coisas estavam todas em seus devidos lugares.
Passou pela parentada do moleque, ouviu o choro e as lamúrias de algumas mulheres, pediu licença e foi até a cerca  perto de um pé de manga rosa-coração.
Foi quando um “pé-de-vento” soprou no rosto de Oriovaldo dando-lhe uma sensação de alívio. Na verdade ele não andava se sentindo muito bem. Desde a manhã daquele dia, depois que aplicou o veneno, que o negro estava um pouco tonto e com um mal-estar que ia e vinha.
      - Parece que comi muita pururuca com pinga, pensou Oriovaldo.
E, sentiu como que se o vento o tivesse arrancado da cerca e levado seu corpo para cima. Sentiu-se voando. Via tudo de cima; as pessoas chorando; outras conversando e tomando água por causa do calor e viu o caixão aberto e o menino repousando para a eternidade. Tudo parecia muito estranho para o negro.
Nesse instante Oriovaldo quis coçar o braço, mas notou que o seu lado direito parecia mais com uma peça de seda bem fina. Pareceu-lhe ser feito de um pano de algodão muito branco.
Oriovaldo assustou-se mais ainda quando viu a sua imagem refletida na cruz prateada que decorava o velório.
    - Sempre quis ser branco por uns instantes, mas não como uma mosca, gritou Oriovaldo horrorizado!
Ninguém ouviu seu grito. Ele tinha sido transformado numa mosca branca.
    O veneno tóxico inspirado pelo negro durante aquela manhã e a picada de uma das centenas de moscas que sobrevoavam o velório fez o Azulão virar uma mosca! Uma mosca branca!
    O velório seguia sua rotina. O cemitério ficava no fim da lavoura,  perto de uma árvore de ipê-roxo pelo lado sul da fazenda.
   Já cansados de procurar e esperar pelo negro Oriovaldo, que era muito amigo do finado moleque, e antes de colocar a tampa para fechar o caixão, os parentes  partiram para os atos finais de encomendação do defunto.
Feito de madeira de pinus o caixão mais parecia uma caixa de embalagem de frutas do que um caixão de finado.
   O ritual seguia sendo cumprido normalmente e Oriovaldo, agora transformado em mosca branca, pousou sobre o caixão. Quando se deu por conta a tampa estava sendo colocada e o negro, ou melhor, a mosca branca foi forçada a alçar-se num vôo suicida para dentro do caixão.
Oriovaldo tentou chamar a atenção das pessoas para si. Porém ninguém o ouviu. Ele gritou, bateu as asas finas, tentou voar enquanto a tampa começou a ser pregada! Ele entrou em desespero. A escuridão tomou conta do lugar. Oriovaldo procurou voar, mas sempre terminava batendo com a cabeça na madeira do caixão. O cheiro das margaridas que envolviam o corpo embrulhou seu o estômago. Por um momento quase vomitou, mas conseguiu conter-se até porque não queria lambuzar o finado.
Num instante, Oriovaldo percebeu que havia uma fresta entre a tampa e a parte de baixo onde repousava o defunto. Aproximou-se do pequeno orifício, espiou, novamente tentou gritar, bateu as asas freneticamente, mas ninguém percebeu sua angústia.
Oriovaldo tentava  raciocinar:
     - Nunca pensei em ser uma mosca branca; sempre quis ser um branco; jamais poderia imaginar que um dia eu ficaria preso dentro de um caixão de defunto e com o defunto junto! E mais:  daqui a um pouco eu serei enterrado com esse moleque.
    Depois de passar alguns minutos ouvindo e espiando o reverendo proferir as últimas palavras de enaltecimento ao féretro e distribuindo todas as bênçãos aos presentes, Oriovaldo sentiu-se cansado. Precisava descansar, repousar. Não tinha mais o mesmo vigor nas suas asas brancas; a voz do padre sumiu por completo dando fim as despedidas.
Procurou então um lugar mais confortável para poder recuperar as energias. Encostou-se e relaxou. Quando estava quase adormecendo, tomado pela exaustão, sentiu uma movimentação estranha.
     - Será que estão carregando o caixão? – pensou.
Mas a seguir conclui horrorizado que o caixão não havia sido deslocado.
    - Mas senão é o caixão então... E, soltou um berro de acordar até um defunto!
O moleque havia mexido a mão e justamente a mão onde Oriovaldo havia pousado.
Mais uma vez o negro tentou fugir e terminou batendo a cabeça na tampa. Meio tonto voou sem rumo e acabou pousando, forçadamente, no nariz do moleque.
- Aaaaaaatchimmmm!
Este foi o resultado da barbeiragem de Oriovaldo!
O pouso forçado provocou o espirro que foi ouvido num raio de quinze metros. A tampa do caixão foi arrancada em função do deslocamento do ar e saltou como um foguete; bateu no ventilador de teto e provocou a maior confusão na sala do velório.
Os convidados correram de um lado para o outro como se fossem moscas tontas. Vasos com flores e bancos foram derrubados; a bombona de água virou molhando o chão de cimento queimado; uma senhora de oitenta e oito anos escorregou e ficou com as pernas arriadas. Um velho, de noventa anos, viu a velha amiga que caíra, deixar a mostra as suas partes mais íntimas e lembrou-se de quantas vezes transitara por aqueles caminhos... Deu um suspiro e logo tentou sair do velório, mas antes bateu cabeça com o reverendo que se aproveitou da humilhante posição da carola para conferir se tudo ainda estava no lugar.
      A mosca branca, ou melhor, Oriovaldo havia aproveitado o momento do “lançamento de tampa de caixão” para voar o mais rápido possível para longe daquele lugar. Procurou a primeira janela aberta e  alçou vôo com destino à lavoura. Fez um sobrevôo de reconhecimento e notou que o moleque havia acordado.
Na realidade, ocorrera que a insolação e o cheiro forte do veneno provocaram um rebuliço na cabeça do menino. Cléberson não tinha morrido, então!
      Passaram-se duas semanas e Cléberson, o moleque, agora totalmente recuperado, sentou-se à mesa para o almoço com a família e seu mais novo amigo - a mosca branca!
Oriovaldo e Cléberson haviam ficado íntimos. Os laços dessa amizade foram selados por iniciativa de Cléberson que acompanhou compulsoriamente, ao vivo e pessoalmente, os acontecimentos dentro daquele caixão. Ele sabia da história de Oriovaldo, até mesmo pelo fato de que o moleque era o único que conseguia ouvir o negro Azulão gritar e falar. Assim, o negro acabou contando com detalhes a sua transformação.
   Oriovaldo passava o tempo todo ao lado de seu amigo com quem tinha momentos de muita alegria e felicidade. Os dois amigos davam-se tão bem que passavam horas relembrando o fato ocorrido no velório e dobravam-se em sonoras gargalhadas.
    Pois foi num desses momentos de total distração que aconteceu a outra tragédia!
A avó de Cléberson, a senhora que havia escorregado no velório,  recuperada do tombo no dia da “ressurreição” de seu neto, aproximou-se cuidadosamente e, com o chinelo na mão, desferiu um golpe certeiro naquela mosca branca que estava pousada no ombro do neto.
     - Essa nojenta já era, disse a anciã vitoriosa olhando para o inseto e empurrando-o para o chão com a ponta do chinelo.
     Cléberson olhou para Oriovaldo e não conseguiu acreditar no que havia acontecido.
Tentou reanimá-lo sem sucesso. Oriovaldo estava morto! A chinelada fora mortalmente definitiva.
   Num gesto carinhoso Cléberson colocou Oriovaldo dentro de uma caixa de fósforos pensando em fazer uma última homenagem ao amigo. A caixinha descansava sobre um guardanapo branco que estava em cima da mesa de jantar.
      Cléberson lembrou-se das conversas, risadas e dos passeios que faziam quando não havia muito vento.  Lembrou-se do espirro que seu amigo Oriovaldo havia lhe provocado no velório.
Lembrou-se da confusão e da correria das pessoas...
     Cléberson decidiu que não iria chorar. Enrolou a caixinha no guardanapo branco e decidiu que a levaria até a lavoura. Abriu uma pequena cova e enterrou seu amigo ficando com todas as tristezas entranhadas na sua mente. Não chorou! Naquela noite ele foi dormir tomado por uma enorme sensação de vazio. Demorou muito para que o sono chegasse. Dormiu na rede de renda branca que ficava sob uma mangueira no pátio da casa.
     O dia começou a nascer e Cléberson foi acordado por uns respingos que caiam no seu rosto entristecido. Aos poucos começou a abrir os olhos. Mais um respingo, e mais outro e outro...
Passou a língua pelo canto da boca e sentiu o sabor do suco de manga-coração. Percebeu que um pássaro azul, quase preto, estava bicando a fruta suculenta.
O  moleque acordou de vez, saltou da rede e falou baixinho fitando o pássaro nos olhos e que agora cantava e batia as asas longas: - Azulão, é você meu amigo!

O INSUPORTÁVEL FUTEBOL

Insuportável é o futebol...