sexta-feira, junho 07, 2013

O APITO DO TREM

         Alécio Mullah confessou, de pronto,  que não suportava mais conviver com suas próprias e massacrantes incertezas.
(A psiquiatra ouvia)
Acordo no meio da madrugada, contava ele, sonhando sempre com aqueles  malditos desejos. Preciso dar um chega pra lá nessas merdas,  disse ele com a fé de um padre.
(A psiquiatra ouvia e anotava).
Instantes antes, Alécio aguardava na sala de espera folheando uma revista do mês retrasado e do ano passado. Era de moda. Mulheres lindas apareciam em poses no que era uma antiga estação de trens. Bastou! Um calor de senhora subiu-lhe pelo pescoço.
Tudo de novo; pensou em voz baixa, jogando a revista no cesto de vime ao lado da poltrona. Tudo de novo; era só no que pensava. Suava, jogado no encosto.
Quando a psiquiatra convidou-o para entrar, ele caminhou cambaleando de tanto desconforto!
(A psiquiatra observava).
Sentaram-se. Ele confessou que tinha muito gosto por mulheres com pernas longas e que adorava ouvir o apito dos trens, mas definitivamente, detestava o apelido que lhe deram ainda na adolescência: Mula. Disse tudo sem respirar e antes de qualquer pergunta dela.
Os colegas de escola me apelidaram de Mula! Pode isso, doutora? Mula, falou Alécio escondendo o rosto entre as mãos quase chorando. Por causa dessa alcunha, eles dizem que sou um aleijado; Mula, Mula, repetia Alécio num desabafo quase infantil.
(A psiquiatra ficou curiosa, enquanto  imaginava a coisa).
Alécio explicou que não era “Mula”, mas “Mullah”! Tem uma enorme diferença, doutora, esbravejou repetindo: “Mullah”, você  percebe?
A psiquiatra desatenta continuava confusa imaginando a enormidade do drama, agora pessoal.
O silêncio da desatenção teria sido interrompido pelo apito da buzina da escavadeira que fazia serviços de manutenção no calçamento da rua em frente à clínica. Mas, Andressa, a psiquiatra, permanecia estática olhando para o chão; na verdade para o nada. Alécio, de cócoras em frente dela,  preocupou-se e perguntou se tudo estava bem ou se ele poderia fazer algo para ajudá-la.
Foi quando  Andressa investiu sobre ele empunhando um estilete ao mesmo tempo em que gritava frases que Alécio pode deduzir serem de ódio por um amante que a teria abusado em tempos passados.
Alécio foi empurrado e caiu. Mesmo estonteado com a violência da mulher não pode deixar de perceber as longas pernas de Andressa, as mesmas longas pernas que o atordoaram até o próximo segundo, quando recebeu o golpe que o deixou mutilado.